Léo: ‘Jogar no Vasco é representar um clube que me representa’ Domingo, 07/04/2024 – 15:49 Às vezes me dá uma vontade danada de explicar para as pessoas como eu me sinto jogando no Vasco. Acontece geralmente depois de uma partida, quando eu chego em casa tarde da noite, pego uma água na geladeira e sento na cozinha pra deixar a adrenalina baixar. É tudo tão forte, ao mesmo tempo tão louco, que é necessário dividir isso com alguém.
Caramba, eu preciso explicar tudo isso!
Mas aí eu fico achando que a explicação que eu tenho pra dar é particular demais e não vai interessar a mais gente. Então acabo explicando pra mim mesmo, pra nunca esquecer: jogar no Vasco é representar um clube que me representa. Entendeu?
Representar um clube que me representa.
No futebol, quase nada pode ser maior do que isso. Quase nada.
Pois é, eu sabia que tu ia achar história. Mas peraí… Eu posso explicar melhor. Eu gostaria de verdade que você entendesse. No fundo é importante pra mais gente, sim. O sentimento é meu, mas eu não tô sozinho nessa. Tem muita coisa envolvida.
Seguinte. Eu fui apresentado no Vasco numa quarta-feira, dia 4 de janeiro de 2023. Conheci os funcionários, a galera toda, falei com a imprensa, vesti a camisa e tudo mais. Pensei que tivesse conhecido o clube inteiro, mas ainda faltava um lugar especial: o Espaço Experiência, em São Januário. É onde ficam os troféus, o mural do Barbosa, as faixas de campeão, as camisas e fotografias de antigamente, as chuteiras de uma tonelada que o Roberto Dinamite usava… A glória do Vasco muito bem contada.
Jogar no Vasco é representar um clube que me representa.
– Léo
Passaram-se alguns meses e eu finalmente fui visitar o lugar que ficou faltando na apresentação. Aí, tô eu lá emocionado com tudo aquilo, olhando, querendo aprender, querendo captar tudo, e o Walmer, historiador do clube, me chama de lado:
— Tá preparado pra ver a Resposta Histórica?
Fiquei em choque. Eu sou do Rio, tô no futebol há bastante tempo, então já tinha ouvido falar daquele documento que o Walmer tirava do cofre pra me mostrar. Coisa fina, né? Foi um antigo presidente do Vasco que escreveu. Tipo uma carta, escrita 100 anos atrás. Por meio dela, o clube avisava que não ia mandar embora seus jogadores pretos, analfabetos e operários coisa nenhuma, que isso que os adversários exigiam pra aceitar o Vasco numa liga nova que estavam criando era um absurdo.
Esse presidente, agora eu sei o nome dele — José Augusto Prestes — disse não, nem pensar. Foi bem claro: “…seria um ato pouco digno de nossa parte sacrificar, ao desejo de filiar-se à AMEA, alguns dos que lutaram para que tivéssemos, entre outras vitórias, a do Campeonato de Futebol da Cidade do Rio de Janeiro de 1923”.
Li a carta todinha e voltei em três palavras que estavam escritas ali: digno, lutaram, vitórias.
Foto: Matheus Lima/Vasco |
Irmão, tu percebeu que, sem a Resposta Histórica do Vasco, talvez não existiria o Pelé? Ou Leônidas, Garrincha, Romário, Ronaldo, Ronaldinho, Rivaldo, vixe… É infinita a lista de pretos de origem humilde que fizeram a gente ser o que é.
Aí, quando me dei conta de que eu, Léo, também não existiria, ou existiria só nas condições que há 500 anos a galera impõe pra gente, caraca!, foi uma luz. Eu senti uma identificação tão poderosa com o Vasco que me segurei pra não chorar em cima daquele tesouro ali na minha frente. Eu senti a minha vida entrelaçada com a história do Vasco, como se fossem uma só. Eu me senti respeitado.
Meus olhos estavam sobre o papel amarelado da carta, aquela página simples escrita a máquina, mas a minha mente ia longe. Passeava lá em São João do Meriti, no nosso barraco de um cômodo no bairro do Tomazinho, num dia de chuva. Entrava água por todo lado. Por cima, por baixo, pelas gretas, tudo. E com a água vinham os ratos. Eu e meus cinco irmãos amontoados num cantinho e meu pai e minha mãe molhados, com cara de derrota por goleada, dizendo pra gente dormir que amanhã ia ficar tudo bem.
Eu tinha 10 anos. E poucas semanas antes, sem que eu fizesse ideia, a vida tinha começado a me levar ao encontro da Resposta Histórica do Vasco.
Foto: Leandro Amorim/Vasco |
Nessa época, eu jogava bola com a molecada num terrão perto de casa. O campo do Barrinho. E pra você ver que certas coisas não têm explicação, simplesmente acontecem: bem na hora em que eu estava conduzindo a bola passa um carro na rua, o motorista olha pro campo, freia e volta. O cara desce, encosta no capô e fica assistindo à nossa pelada.
Quando termina, ele vem direto em mim. Diz que ficou impressionado com a maneira que eu corria com a bola, com passadas largas e a cabeça erguida. E que, se eu quisesse, ele podia me levar pra algum clube. Pô, claro que eu queria. Era só ele ir lá em casa falar com meus pais.
Esse cara do carro era o Alan, que está comigo até hoje, parceiraço. Ele contou que, nas poucas vezes que passou por aquela rua, nunca tinha visto ninguém jogando no Barrinho. Naquele dia, literalmente, foi a mão de Deus.
Só que inicialmente as coisas se encaminharam para um momento muito sofrido pra mim. Meu pai disse não pro Alan. Ele não deixaria o caçula de 10 anos ficar solto nesse mundo. Se já estava difícil pra toda a família junta, imagina ela separada…
Meu pai era padeiro, sabe? E os padeiros têm um senso de responsabilidade enorme. Se ele fica gripado, se perde a hora, se perde o busão, a freguesia fica sem pão quente de manhã. E o meu pai nunca ficava gripado, nunca perdia a hora e nem o busão. Mas isso nem passava perto de poder tirar a gente do nosso cômodo encharcado e cheio de ratos. Toda noite eu via a angústia no rosto dele e da minha mãe. Me doía tanto. Apertava meu peito.
Então, com 10 anos, eu tive que tomar uma atitude. Não me pergunte como uma criança tão pequena foi capaz de articular essa frase inteira, ou mesmo essa ideia inteira, mas eu não esqueço do sentimento que me movia, muito menos das palavras que eu usei:
“Pai, deixa eu ir jogar bola que eu vou mudar a história da nossa família.”
Foto: Daniel Ramalho/Vasco |
Assim o Alan falou com um amigo dele, o Simão, e eu fui fazer um teste no Palmeiras. Reprovado. Me acharam franzino demais. Aí fui pra Santos, pro time que na época era do Pelé, o Litoral/Jabaquara.
Era difícil ficar longe de casa, morar no alojamento do clube. A solidão pegava, não vou mentir, não. Mas eu tinha claro na minha cabeça o motivo que me levou até lá. Os rostos tristes do meu pai e da minha mãe, que vinham nos meus olhos quando eu os fechava pra dormir, não me deixavam esquecer. Eu enfrentaria qualquer coisa pra cumprir o que eu tinha prometido: mudar a história da nossa família. O futebol não era um sonho pra mim. Era a realidade — a única realidade em que eu podia me agarrar.
Mas eu esqueci de combinar com os racistas, né? E, nessa, faltou pouco pra minha esperança e a minha determinação virarem poeira.
Um dia, eu com uns 13 anos, por aí, fui ao shopping em Santos. Queria só passear, mas não passei da entrada. O segurança botou a mão no meu peito assim que a porta automática abriu: “Rapa fora, moleque! Você tá aqui pra pedir dinheiro, que eu tô ligado. Mas não vai entrar, não. Pode rapar fora!”.
Cara, eu fiquei atordoado. Não sabia o que dizer. Só consegui virar as costas e sair chorando. Chorei o caminho inteiro na volta pro alojamento do clube. Eu sentia raiva, decepção, impotência. Eu me via na cara derrotada do meu pai em dia de chuva lá em Tomazinho. Mas, acima de tudo, eu sentia vergonha. A maior vergonha da minha vida até hoje.
Liguei pro meu irmão Renato e falei que não dava mais: “Eu quero ir embora. Quero desistir. Chega. Quero voltar pra casa”. Na mesma hora, o Renato pegou um ônibus em São João do Meriti, foi pro Rio e, do Rio, viajou à noite pra Santos. De manhã, nós voltamos no shopping e ele foi falar com o segurança. Falou muitas coisas, ora calmo, ora ríspido, mas o que eu mais ouvia era a palavra “respeito”.
A vergonha me acompanhou por muito tempo e eu sempre me esforcei pra tentar esquecer essa história. Evitava falar nela, pra não ter que sofrer tudo de novo. Mas essa nunca foi a melhor solução.
Quando conheci a Resposta Histórica, eu senti a minha vida entrelaçada com a história do Vasco, como se fossem uma só.
– Léo
Primeiro porque, silenciando a minha dor, eu não estava honrando o gesto e a lição do meu irmão, uma das mais importantes que eu recebi. Naquele dia, ao juntar os trocados que ganhava cortando cabelo em Tomazinho e correr pra Santos para me confortar, o Renato me mostrou na prática que a gente precisa cuidar uns dos outros. Que a violência racista, a desumanização que ela tenta provocar até em crianças que só querem dar um passeio no shopping, deve ser contida. Que a única maneira de conter o racismo é resistir. E que resistir também é falar.
Hoje eu falo por mim, por meus pais, por meus irmãos, pelos Camisas Negras, pela Resposta Histórica. E não tem nisso nenhuma vontade minha de ser melhor por causa da minha pele, embora o povo preto contribua tanto para tornar o mundo mais bonito.
Nelson Mandela, Michael Jordan, Lebron, Kobe, Jesse Owens, Hamilton, Muhammad Ali, Serena, Daiane dos Santos, Tais Araújo, Camila Pitanga… Se deixar eu fico até o fim do ano aqui citando gente preta que fez e faz coisas extraordinárias. Eu sinto um tremendo orgulho da minha cor. Mas nem por isso eu desejo ser melhor que alguém. Eu quero ser igual, entendeu? Eu demorei pra entender tudo isso. E a maneira que as coisas aconteceram, apesar de dolorosas, foram importantes pra que eu ficasse de pé.
Quando eu tinha 14 anos, fui pro Fluminense. Tu sabe como é forte a base do Fluminense, não sabe? Acho que o único que não era promessa ali era eu. Um dia, já no profissional, o Abel Braga me falou assim: “Garoto, tô achando você muito cansado. Grande e jovem desse jeito… Cadê a tua força?”. E eu sei lá por que me abri com o Abel sobre o que me afligia e me envergonhava. “Sabe o que é, professor, eu não consigo dormir em noites de chuva. Deito na cama e fico pensando nos meus pais e meus irmãos em São João do Meriti. Eles vivem num cômodo que entra água, é tudo muito difícil pra eles lá. Aí o sono não vem e logo já é de manhã.”
Depois dessa conversa, o Abel começou a entender melhor a minha história. Eu fui entendendo, refletindo, melhorando. Por isso que, no final de 2022, quando o Abel me ligou e perguntou se eu queria vir pro novo projeto do Vasco, eu só tinha uma resposta pra dar a ele: “Conta comigo, professor”.
Foto: Leandro Amorim/Vasco |
Como eu disse antes, a gente precisa cuidar das pessoas. Muita gente cuidou de mim até que eu conseguisse deslanchar e, enfim, tivesse condições de cuidar da minha família. Então, eu não posso olhar pra trás e desconsiderar tudo isso, achar que aconteceu só pelo meu esforço. Isso não existe.
Vou dar um exemplo legal. Hoje eu convivo com o Payet, jogador de grandes times europeus, seleção francesa, que só não disputou Copa do Mundo por causa de uma lesão. Todo dia o cara tem uma palavra boa pros colegas, pros funcionários, pra todo mundo.
Essa noção de solidariedade, igualdade e fraternidade é um patrimônio do Vasco.
– Léo
Como ele tem muita técnica, tenta mostrar o melhor jeito de bater na bola, explica, orienta os mais jovens. Pergunta como a gente tá se sentindo, se ele pode ajudar em alguma coisa. Às vezes ele quer falar, mas não conhece a palavra em português. Aí corre pra buscar o celular e bota no tradutor. Não deixa ninguém no vácuo. Quem é que pode ficar indiferente a esse tipo de cara? Um cracaço de bola, mas melhor ainda como ser humano.
Essa noção de solidariedade, igualdade e fraternidade é um patrimônio do Vasco. Do craque do time ao roupeiro. Da diretoria ao pessoal da cozinha. Quem veste essa camisa tem que saber disso. E eu me sinto feliz de poder contribuir de alguma forma.
Juro pra você: não foi por acaso que eu desabei no meio do campo no final do jogo que garantiu a nossa permanência na Série A do Campeonato Brasileiro. Eu estava sentindo o que cada um dos nossos torcedores e cada funcionário do clube sentia. O alívio deles era o meu também. Tinha sido um ano complicado, muito duro mesmo. Nos momentos de dificuldade, eu mal conseguia brincar com as minhas filhas. Parecia que, assim como há 100 anos, tudo conspirava contra o nosso time. E a gente aguentou.
Foto: Leandro Amorim/Vasco |
Aguentou porque é Vasco, porque um cuidou do outro, porque aqui é a casa da resistência, o altar da Resposta Histórica que nenhum outro clube tem pra se orgulhar. Aqui tem “Camisas Negras que guardo na memória. Glória, lutas, vitórias: esta é a minha história”.
A nossa história.
Ainda sonho em conquistar títulos aqui e vou continuar me dedicando ao máximo para fazer o clube voltar a ser vitorioso em campo como sempre foi. Eu sei que nossa torcida merece mais, muito mais. Mas isso, a honra de ser e viver o Vasco, na alegria e na dor, ninguém tira da gente.
“Nunca vão entender esse amor.”
Tu me representa, Vascão!
Fonte: The Players’ Tribune