Presidente do Retrô-PE, recém-promovido à Série C, revela inspiração em Eurico Miranda
Em meio ao êxtase pela conquista inédita do título da Série D, o experiente lateral-direito Toty cochichava com seu patrão. Ao pé do ouvido, fez-lhe um pedido.
“”Presidente, quem não lhe conhece, não sabe como você é importante e bom. Por favor, pare de brigar””
— sussurou o jogador
O “presidente” é Laércio Guerra. Famoso por não ter papas na língua, no que ele denomina como um ato corajoso, o empresário é dono do Retrô-PE, “novo rico do Nordeste” a ascender à Série C.
E, por trás do clube, há um cartola (para dizer o mínimo) nada convencional. Em entrevista de cerca de uma hora na sala de seu escritório, o ge conheceu a vida – e os contrassensos – de Laércio Guerra de Melo Júnior.
De quem ostenta Ferraris na garagem, tem o clube (literalmente) como quintal de casa, Eurico Miranda como referência de cartola e o sonho de jogar a Série A muito em breve. Ambicioso, Laércio admite, com certa ironia, ser um sujeito afortunado.
“Como eu dou sorte em algumas coisas, é capaz de acontecer… Vamos ver aí”.
Suburbano, antes de tudo
Antes de apresentar o Laércio gestor e multimilionário, é preciso, antes, revisitar o Laércio suburbano.
Aluno de escola pública, do colégio Dom Vital, o garoto nasceu e cresceu em Casa Amarela, bairro da Zona Norte do Recife, com a mãe costureira, Lenilda Rodrigues, o pai taxista, Laércio Guerra, e as irmãs Shirley, Alessandra e Simone.
Uma família que sempre viveu no aperto, mas a paixão pelo futebol era um fio a se apegar. Como “qualquer menino humilde do subúrbio”, diz o dirigente, sonhava em ser jogador.
Com 10 anos, Laércio chegou a montar um time no bairro, o Sírio de Casa Amarela – em homenagem ao Esporte Clube Sírio, equipe de basquete de São Paulo. Comprou as camisas, pintou o uniforme com os amigos, mas fracassou na empreitada. Não foi a primeira vez.
– Meu primeiro negócio foi vender pinto. Eu vim descobrir que uma galinha era cara quando eu fui para a feira. Eu disse: como é que a galinha é cara e o pinto é barato? Aí comecei a criar pinto para vender galinha. Mas um mês depois morreram os pintos todinhos, porque eu não sabia cuidar de pinto.
Assim, a instiga precoce para os negócios começava a aflorar, em contrapartida ao histórico pouco exemplar nos estudos. A falta de proximidade com os livros, no entanto, não impediu Laércio de terminar o ensino médio e o superior.
A veia empreendedora toma forma
Graduou-se em Administração em universidade particular com ajuda do dinheiro que ganhava como estagiário, uma espécie de faz tudo, no antigo Banco Real. Experiência que seria um pontapé para se transformar no empresário de porte que é hoje.
– Tinha uma relação muito boa com os clientes e comecei a conhecer o pessoal da indústria farmacêutica, que também era cliente do banco. Dali, conheço Bolívar, um cara marcante. Pedi uma chance para ele no laboratório, fui para entrevista e deu certo – relembra.
Laércio começou a ganhar um bom dinheiro, estava satisfeito com a carreira – havia iniciado até uma pós-graduação em Economia -, quando escutou a sugestão de um colega de trabalho.
– Pô, tu conversa bem, fala bem… Por que tu não vai dar aula em faculdade?
A sugestão do amigo virou realidade, embora o dirigente não esperasse tanto sucesso.
– Minhas aulas de marketing lotavam, lotavam. Então eu disse: “C…, vou aprender a mexer no sistema e entender quais são os critérios para abrir faculdade”.
O dom com a palavra surpreende até quem convive quase que diariamente com Laércio.
O experiente atacante Fernandinho, ex-Grêmio, Flamengo e São Paulo, é um dos que se reconhece impactado: “É um cara que, realmente, Deus abençoou. Quando eu estou com ele, sempre é uma aula”, diz o jogador, atleta do Retrô há dois anos e fiel escudeiro do (agora) patrão.
A construção da IBGM – depois Unibra
Em 2007, a chance desejada por Laércio clareou. O Brasil havia acabado de criar o protocolo e-MEC, espécie de procedimento (novo) padrão para abertura de instituições de ensino superior no Brasil. O dirigente mandou o projeto “na cara e na coragem” e, um ano depois, recebeu a visita do órgão.
Ao lado de um mutirão de amigos, ele mesmo deu um “banho de loja” na faculdade – cujo terreno foi comprado por R$ 200 mil a um dono de escola tradicional no Recife. O serviço só terminou às 5h da manhã, no dia da visita, mas rendeu: nascia, ali, o Instituto Brasileiro de Gestão e Marketing (IBGM).
– A gente passou com a nota bem baixinha. Conseguimos abrir em 2008, e aí pronto, abriu, e agora? Aí eu disse, agora eu vou criar meu modelo de negócio. Comecei com 56 alunos e hoje a gente fica variando de 25 a 30 mil alunos. Virou um negócio gigante – passa a limpo.
Um negócio que alimenta o Retrô, aliás. Vem da IGBM, agora Unibra – Centro Universitário Brasileiro – a origem dos milhões de reais destinados ao clube. Ao todo, estima Laércio, mais de R$ 70 milhões foram investidos na Fênix desde sua criação, em 2016. Daí, a pergunta de muitos.
De onde vem tanto dinheiro?
A pergunta não inquieta. Na verdade, é até difícil desconcertar o dirigente – que, como se vende, é bom de lábia. Com a Unibra, o empresário conta que diversificou o próprio portfólio de negócios.
Reinvestiu os ganhos pessoais levantando outros empreendimentos na Região Metropolitana do Recife: imóveis de alto padrão – um deles, na Reserva do Paiva, reduto de celebridades em Pernambuco – academias, restaurantes e uma construtora de imóveis.
O terreno de 16 hectares onde abriga a estrutura do Retrô, aliás, seria um condomínio.
“Eu tinha um projeto na Prefeitura para abrir um condomínio aqui. Aí, um certo dia, pensei: ‘Pô, condomínio? Eu vou fazer um clube’. Aí meti trator e loucura mesmo”.
Mas, há algo que tira Laércio dos eixos quando o assunto é dinheiro: carros, uma paixão – e um trauma da infância, revela. Na garagem de casa, uma espécie de apêndice dentro do terreno do Retrô, são oito.
Com exceção de um Chevrolet Boca de Sapo, de 1951, os demais são de luxo e dois chamam atenção. Não é para menos: duas Ferraris. Uma, exclusivíssima: Ferrari Spider 488. Avaliada em mais de R$ 3 milhões, o proprietário da Fênix garante: “É a mesma de Neymar. Desta, só tinham duas no Brasil”.
Ele ainda ostenta o modelo da Ferrari Califórnia, além de Porsche, BMW e outros – embora se classifique como um “um cara muito econômico” e depois pondere que “aparentemente não”.
– Eu gosto muito de carros. A coisa mais difícil que a gente tinha era carro. Então, você imagina, eu poder ter um carro para o meu pai, ter um carro hoje. Você vai me ver andando muito pouco de Ferrari, mas é essa ligação: meu avô era taxista, meu tio taxista, meu pai taxista. Acabou tendo uma ligação de entender de carro e depois de muitos anos comprar alguns carros e poder tê-los como meus – justifica.
As tretas: o jeito Laércio de ser
Mas, mais que ser um empreendedor de sucesso e consumidor voraz de automóveis de luxo, há algo que acompanha a vida de Laércio: as tretas. Ninguém mede as palavras do dirigente ou ousa interpelá-lo. “Laércio não tem filtro”, ouviu a reportagem de alguns funcionários do cartola, em anonimato.
Como aluno (ele diz, sem dar detalhes, ter brigado com um professor no mestrado, razão pela qual não concluiu a pós-graduação), como empresário do setor da educação e, agora, dono de um clube.
Presidente do Retrô-PE provoca Cruzeiro antes de jogo pela Copa São Paulo de Juniores
Os desafetos existem, admite com naturalidade o proprietário do Retrô. Mas incomodam?
“É normal, não só no futebol, na vida, um cara lindo, fofo, maravilhoso… Tô brincando. Rapaz, é normal, mas isso não é um problema para mim. Eu sou de boa, eu vou discutir, como uma arena política. Se for desafeto e quiser tomar uma cerveja comigo, a gente bebe sem nenhum problema”.
Essa veia do embate, no futebol, já foi vista algumas vezes. Nas oitavas de final da Série D, contra o Santa Cruz, em 2022, Laércio quis “apimentar” o jogo e anunciou ingressos a R$ 300. O Procon-PE autuou o Retrô, mas uma conversa entre diretorias reduziu o valor dos bilhetes.
Em campo, o clube de Camaragibe foi eliminado e ouviu poucas e boas dos tricolores na Arena de Pernambuco. Laércio também engoliu seco quando cantou vitória antes do jogo contra o Cruzeiro, na Copinha, também em 2022.
“Vou pegar o Cruzeiro e vou ganhar, pode anotar. Amanhã à noite, estou classificado. Estou dizendo com antecedência. Inclusive pode passar no vestiário do Cruzeiro esse meu vídeo”, cravou.
Resultado: vitória celeste e eliminação do Retrô – com direito a provocação dos atletas da Raposa ao final do jogo. “Laércio é só caô, tchau Retrô”, estamparam em uma cartolina os atletas celestes.
O modo desbocado quase sempre gera respostas afiadas de quem foi atiçado, mas nem sempre ficam por isto mesmo. Jean, goleiro do Retrô entre 2020 e 2023, é um caso que terminou na Justiça.
“Cara comprado não deixa rastro”
Aos 53 minutos do segundo tempo, a partida se encaminhava para a classificação da Fênix rumo ao mata-mata do acesso na Série D, em 2023, mas Jean se antecipou errado ao lance de contra-ataque do Maranhão e o adversário fez o gol que forçou a disputa por pênaltis – na qual se classificaria.
Laércio não aguentou. Meses depois, numa entrevista, garantiu ter “certeza” de que seu ex-atleta se vendeu. Jean foi contratado pelo Maranhão no ano seguinte.
“Para mim foi o carimbo (quando ele acerta com o Maranhão). Tenho certeza (que se vendeu). Mas o cara que foi comprado não deixa rastro. Eu tenho temperamento muito explosivo, é da minha natureza. Se eu vir esse cara…””
— disparou ao jornalista Léo Medrado, no Youtube
Jean respondeu à reportagem e, sendo sucinto, disse que teve problemas com Laércio quando deixou o Retrô. Ele também afirmou que a convivência era “boa” entre ambos enquanto esteve no clube.
O jogador se defende das acusações “sem senso” do dirigente e contemporiza falha contra o Maranhão: “Erros e acertos vão sempre existir no futebol”. Ele move ação de R$ 200 mil contra o ex-patrão, que responde criminalmente por danos morais, ameaça e crime contra a honra.
Retrô cai para o Maranhão em jogo com roteiro trágico
– Ele nunca foi meu desafeto. Ele se tornou por conta da difamação que fez e que me trouxe um prejuízo muito grande profissional e familiar. E eu não acho que é uma boa pessoa, porque (eu sou) um cara que fez 94 jogos com a camisa do time dele. Ele devia ter mais senso no que fala – defendeu-se.
– Se esse ano o clube dele estava nas competições que disputou eu estava em campo lutando. Fomos vice para o maior de Pernambuco (referiu-se ao Sport) dentro da Ilha do Retiro, ganhando as vagas da Série D, Copa do Brasil e pré-Copa do Nordeste. E outras pessoas erraram no mesmo lance (do gol do Maranhão). Não foi um erro individual meu. Nos pênaltis eu ainda peguei um e erramos dois – acrescentou.
Polêmico ou não?
Laércio confessa que o exercício de se autodefinir é difícil, mas, provocado pela reportagem, avalia a si mesmo. Polêmico? Não… “Verdadeiro”.
“Eu tenho minhas convicções. Acho que às vezes pego um pouco por isso. Comigo não vai ter bandidagem, ‘mentiragem’. Sou um cara muito correto com minhas coisas, ninguém pode estar andando de Ferrari, nem estar montando um time de futebol, se tivesse alguma coisa errada”.
Inclusive, o empresário se gaba dos poucos litígios na Justiça porque assegura: tem “muito boa” relação com seus funcionários. O Jusbrasil, site de consulta de processos, aponta 65 ações envolvendo o cartola.
Algumas (muitas) outras foram solucionadas, acrescenta, sobretudo envolvendo o Sport, clube do qual Laércio é torcedor… Menos quando enfrenta o Retrô.
O dirigente ocupou o cargo de vice-presidente de marketing do Leão em 2018, ano do rebaixamento do clube à Série B, e diz ter tirado do próprio bolso R$ 4,2 milhões para ajudar o Rubro-negro.
O empresário crava: na história, nenhum outro gestor contribuiu mais financeiramente do que ele. Hoje, com juros, Laércio teria a receber R$ 10 milhões do (ex) time do coração.
O assunto desceu indigesto na Ilha do Retiro há até poucos dias e resultou em muitos desafetos nas redes sociais. Mas, uma conversa franca com o presidente Yuri Romão selou a “paz”: Laércio abriu mão dos juros e receberá R$ 3,8 milhões do empréstimo.
Ainda assim, os xingamentos continuam na Internet.
– Isso é uma narrativa. Já processei mais de 40 pessoas e ganhei mais de 30 processos. Eu tenho uma equipe, graças a Deus, muito grande de advogados. Eles vão lá, pegam, printam e processam. Eu tenho a minha vida muito correta, limpa. Eu acho que as pessoas criam um pouco de ame ou odeie – exclama.
O ge reforça a pergunta, então. Ser julgado como figura um tanto intragável não afeta nem um pouco?
“De verdade, eu não me me preocupo. Não é uma coisa, assim, que me tira um segundo do meu sono.”
— sustenta Laércio
As referências no mundo boleiro
A aparência inabalável bebe de algumas fontes, inspirações. Como empresário, João Carlos Paes Mendonça, dono do grupo JCPM, é referência enquanto empreendedor no mundo dos negócios. Como gestor de futebol, Eurico Miranda, icônico cartola do Vasco, e Mario Celso Petraglia, do Athletico.
No entanto, o presidente cruzmaltino, falecido em 2019, é por quem Laércio nutre mais afinidade. O dono do Retrô justifica o gosto – e, convenhamos, não é difícil adivinhar por qual razão.
– Tem um cara que é muito polêmico… Mas eu gosto do jeito de Eurico Miranda. Ele transformou o Vasco da Gama, que virou uma potência no Rio de Janeiro depois de Eurico. O Vasco era um time importante no Rio, mas não era um time muito grande, e ele desafiou o Flamengo, o Fluminense.
Desafiar, bater de frente, são posturas comuns as quais Laércio tenta replicar de quem lhe trouxe o recado do mundo da bola: para brigar com os grandes, é preciso incomodar.
E é neste momento que o empresário se convence de que sim, talvez, seja polêmico – usando até o exemplo dos chinelos que gosta de calçar e motivo de costumeiras gozações.
“Essa sandália veio diretamente de Israel, foi?”, brincou um internauta.
“Como já virou polêmica eu gosto de usar mais. Mas, como é que a gente não vai ser polêmico num mercado que tem três marcas centenárias (Sport, Náutico e Santa Cruz) e eu chego aqui dizendo que vou ganhar delas? Se for polêmica de poder falar as coisas, eu sou. A verdade às vezes machuca um pouco, entendeu?”, afirma, sem pestanejar.
A transformação que Eurico Miranda provocou no Vasco entre a décadas de 1980 e o início dos anos 2000 é o sonho de consumo que Laércio mentaliza para o Retrô, afinal.
O clube “de Cristo”, baseado nos preceitos bíblicos de “não matar e não roubar” e criado para os filhos Cauã e Diego Guerra, depois de quatro anos batendo na trave, subiu para a Série C e consagrou-se campeão da Quarta Divisão em 2024.
Os planos para o Retrô
O acesso para a Série C é um feito inédito que torna possível mais investimentos em 2025, é verdade. Mas que não transformará (ainda) o Retrô autossustentável. O caminho é longo – e árduo.
“Como negócio, o Retrô é bom, mas ainda não teve o efeito daquilo que a gente está esperando. Leva um pouco de tempo.”
— aponta Laércio Guerra
O efeito que se espera é óbvio: ser superavitário. A Fênix não tem dívidas, mas opera desde 2016 vermelho e, para o exercício de 2024, o déficit do clube está próximo dos R$ 4 milhões, revela Guerra.
Em venda de atletas, a equipe de Camaragibe estima fechar em R$ 5 milhões, a serem acrescidos de eventos realizados anualmente no centro de treinamento, como a Copa Atlântico e a Aldeia Cup, destinados às categorias de base – e importantes sobremaneira para evitar rombo maior nas contas.
– A gente vai ter um orçamento que vai variar perto de R$ 12 milhões e a gente deve arrecadar R$ 8 milhões. Então, vamos ter um déficit de R$ 4 milhões. Acho que ano que vem a gente tem de 30% a 40% de déficit, mas indo para uma Série B chegamos muito perto de igualar – disseca Laércio.
– Agora, ‘ô Laércio’, se tu nunca for para a Série B, tu sempre vai ser deficitário? Não. Porque a gente todo ano negocia jogadores. Todo ano a gente bota de 10 a 20 atletas no mercado. Então, eu imagino que daqui a três anos, mesmo sem estar numa Série B, essas cestas vão gerar receita – contextualiza.
Enquanto os objetivos do futuro não se concretizam, os do presente são trabalhados minuciosamente. Para 2025, a meta do Retrô é subir à Série B.
Caso não, a conquista do Estadual, chegar até a terceira fase da Copa do Brasil e beliscar um mata-mata da Copa do Nordeste estariam “de bom tamanho”.
A folha salarial é tratada como modesta e vai variar entre R$ 1 milhão e R$ 1,2 milhão mensal, embora o clube entenda ser possível alcançar uma das metas.
Mas, e a Série A? Para quem, desde pequeno, acostumou-se tanto a sonhar (e a realizar), a projeção está perto. Afinal, estamos falando de um dirigente que se recusa em passar despercebido.
“Meu sonho seria 2028. Porque seriam 20 anos da inauguração do meu grande negócio, que é a Unibra. Seria histórico, um marco”, encerra Laércio.
Fonte: ge